sexta-feira, 15 de abril de 2016

Um relato em lágrimas

Era uma menina bem simples. Roupinhas surradas, sujas, cabelos sempre presos, mas despenteados e não eram limpos com frequência. Via-se de longe como era carente.

Seu histórico do ano passado: bem conhecido por várias professoras. Dava chiliques quando contrariada, jogava-se ao chão, gritava, jogava mesa e cadeiras na turma e na professora. Pais ausentes. Uma possibilidade de abuso sexual que me arrepiava só de imaginar...

Caiu em minha sala. Sempre sentava à frente, observava as explicações, mas, quando chamava sua atenção por causa de conversa, ela colocava a cabeça de lado, fechava os olhos e dava um sorrisinho reto, mostrando sua “janelinha” na frente.

A pedagoga da escola disse para mim, para me acalmar: “Ela não foi colocada na sua sala por acaso, Deus tem um propósito”. E ela estava certa! Em minha presunção, imaginei que poderia acrescentar um milésimo de milímetro em sua vida. Mal sabia eu que Deus, sempre escrevendo certo por linhas certas, iria usá-la de forma tão poderosa para acrescentar quilômetros de lições em minha vida.

Um mês de aula se passou sem maiores problemas. Mas chegou o dia temido: seu primeiro chilique. Só não imaginava que a culpada seria eu...

Estávamos corrigindo um dever, e eu já havia insistido mais de uma vez com ela para que largasse o lápis, prestasse atenção e só corrigisse depois.

- AJ, já te expliquei. Prestar atenção é mais importante do que copiar, senão você não aprende.

Na terceira, tomei uma daquelas atitudes que tomamos na hora da raiva. E que nos arrependemos no mesmo segundo. Quem é professor me entende. Tem horas que não dá para segurar. Não estou justificando, estava completamente errada, mas as consequências seriam trágicas: dei um berro que a assustou. Mas um berro daqueles de tremer a sala:

- AJ!!!! Larga esse lápis agora!!!!! Eu já falei mil vezes!!!! RM (a colega ao lado), tira o lápis dela!

Fiquei vermelha de raiva e fui para cima de sua mesa. RM tentou pegar o lápis, AJ não deixou, ficou nervosa e começou a bater nela. AJ me olhou quando me aproximei, o rosto ardendo de ódio, soltou um grito, começou a chorar, amassou seu dever e abaixou a cabeça...

- Não começa com seus chiliques! Na minha sala você não fará isso!!!!!

Meu corpo começou a tremer. Me assustei com sua expressão de ódio, raiva. Me enchi de remorso, pensando mil coisas, no que eu tinha feito! Aquele chilique não era culpa dela, eu provoquei! Por que fiz isso? Ela estava péssima! Sua vida já deveria ser miserável em casa em todos os sentidos! Não precisava torná-la um inferno ali também.

Sua reação era esperada, mas havia algo mais ali também... Algo que minha fúria despertou e eu tinha que resolver.

Continuei a aula aos trancos e barrancos. Pedi a RM que se afastasse de AJ. Deu outra atividade aos outros e Deus falou comigo: Aproxime-se dela.

E eu: não, ela vai gritar, será pior.

Mas novamente: Aproxime-se dela...

Eu fui. Puxei a cadeira e sentei. Ela se encolheu, soltando um gemido.

- AJ, não precisa se afastar. Não vou te bater. Sou sua professora...

- …(continuava chorando)

- AJ, não precisava de você ter feito isso. Quando a gente está com raiva, não precisamos gritar. Você já é uma moça. Se antes você dava chilique, agora não, você já cresceu! Você está bem? Está acontecendo algo em sua casa que você quer me dizer?

- … (continuava chorando, com mais intensidade após essa frase)

Me afastei. Coloquei seu livro de português ao lado. Alguns minutos se passaram até que ela começasse a responder. Mas pelo menos começou. Tirei o dever amassado do chão. Descemos para o lanche.

Na hora do recreio, pedi a ela que subisse comigo. Fez cara feia, me esnobou, mas me seguiu. Entramos na sala da direção e fechei a porta.

- AJ, perdão. Eu não deveria ter gritado com você. Adultos também erram. E muito. Sei que sou brava, mas eu amo você! Se chamo sua atenção, é porque quero que você aprenda a ler, que você melhore. Se eu não gostasse de você, eu nem me importaria se está se concentrando. Mas me importo! Eu quero te ajudar, ser sua amiga. Há algo que está te entristecendo?

- Não...

- Você pode me dizer. Há algo acontecendo em sua casa?

- Não... (seus olhos se enchem de lágrimas).

- Se está, você pode me dizer. Quero te ajudar.

Silêncio. Seus olhos tremem, cheios de lágrimas. Os meus também.

- Não vou te obrigar a dizer nada. Mas saiba que sempre estarei aqui para te ouvir quando precisar. Mas, quando estamos com raiva, não é gritando ou amassando o dever que vamos resolver. Isso diminuiu sua raiva?

- Não.

- Sabia que uma vez eu fiquei com tanta raiva que joguei meu celular no chão? Ele quebrou e o conserto ficou caro. Meu marido me fez a mesma pergunta: a raiva passou? Adiantou quebrar o celular?

Ela começou a esboçar um sorriso.

- Não precisamos agir assim quando estamos com raiva. Temos que nos controlar, ok?

Me levanto.

- Posso ganhar um abraço?

- Não.

- Posso “roubar” um abraço?

Me aproximo e ela se encolhe. Faço cosquinhas. Ela não ri.

- Pode descer para o intervalo. Você não está de castigo.

Abro a porta.

- Tia? Fecha a porta. Desculpa por ter gritado com você.

- Desculpa por ter gritado com você também.

Ela me deu um abraço apertado e sorriu. Dei um beijo em sua bochecha e ganhei outro bem estalado.

A tarde transcorreu normal até seu fim...

Seria um dia como outro qualquer, se uma grande menina não tivesse ensinado uma grande lição à sua pequena professora...

Ela não sabe, mas eu chorei quando contei essa história ao meu marido. Ela não sabe, mas ele também chorou quando ouviu. Ela não sabe, mas chorei enquanto escrevi esse relato.

Ela não sabe, mas, às vezes, estou pensando em algo da minha turma e jogo minha cabeça para o lado, fecho os olhos e dou um sorriso reto, o qual, quando lembro que sem querer querendo imitei-a, se transforma num sorriso largo. Ela não sabe, mas irá saber, que tê-la como aluna está sendo um dos maiores presentes e aprendizados de 2016...

Um comentário:

  1. Essa é a mais nobre pedagogia, esses momentos são os que nos tornam mestres na arte de ensinar. Parabéns professora seu ministério é raro apesar de ser o que a educação precisa. Também chorei enquanto lia. Continue levando amor onde você passar.

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